sexta-feira, fevereiro 27, 2004

Anjo do Deserto

Depois de uma longa caminhada pela região dos Pequenos Lençóis, a sede apertou, o que me fez aproximar de uma pequena casa para pedir um copo d’água. Nela crianças brincavam do lado de fora do quintal, enquanto duas mulheres conversavam sentadas num tronco deitado. Elas me convidaram para entrar. Dentro da casa imagens de santos penduradas na parede se misturavam com pôster de atores da globo, aqueles que vem junto com revistas de fofocas. Perguntaram de onde eu vinha e o que estava fazendo por ali, mas minha atenção estava voltada para um criança de colo que não me parava de me olhar. Seus olhos opacos e cheios de remela pareciam pedir ajuda. Não resisti e perguntei se ela estava doente. A mulher que a carregava disse que a criança estava com uma diarréia há quase uma semana, mas que logo ficaria boa. Eu retruquei insistindo que ela deveria ser levada para um hospital, mas como o hospital mais próximo estava há duas horas de viagem de carro, elas riram dizendo que não poderiam fazer nada. Eu argumentei dizendo no dia seguinte iria para Tutoia realizar um trabalho e que poderia acionar uma ambulância para que a criança fosse internada. Eu não conseguia desviar meus olhos do pequeno que também me olhava parecendo compreender e agradecer a minha preocupação. A mulher que num primeiro instante achei que fosse a mãe disse que a só poderia leva-lo com o consentimento da progenitora que estava na fora, junto com o marido levando uma vida nômade pelos mangues da barra do rio Novo, a cata de caranguejos. Eles só voltariam dentro de alguns dias. Eu continuei insistindo falando que ela deveria ir junto e ela retrucou que já estava fazendo um favor de cuidar de uma criança adoentada e que não iria se arrumar e se deslocar ate Tutoia. Preferia esperar a mãe pois, segundo ela, esse tipo de viagem daria muito trabalho. A discussão ficou tensa, a criança adoentada estava tão fraca que não esboçava nenhum tipo de reação. Fui embora.

Depois de algumas semanas voltei para a região dos Pequenos Lençóis, parando naquela mesma casa para perguntar sobre a saúde da criança. Vi que aquela mulher que entrara na discussão comigo se retirou para o quarto. Uma senhora que estava na casa disse que a criança seguiu a vontade de Deus, falecendo dois dias depois da minha estada por lá. E foi enfática: “Não tivemos culpa. Deus quis que ela fosse embora. Seja feita vossa vontade.” Fiz o sinal da cruz e entristecido e inconformado com o descaso fui assistir o por do sol no alto da maior duna. Por lá chorei durante algum tempo.