quinta-feira, novembro 18, 2004

Caminhos para Jaco

Esse final de semana foi feriado aqui, como em qualquer outro país católico. Dia de Finados. Me lancei para o local onde dizem ser o lugar mais bonito do Timor Leste e realmente é. Fui com alguns amigos com os transportes locais até chegar na ilha de Jaco no extremo leste do Timor. Os ônibus aqui saem na hora que eles bem entendem da rotatória próxima do estádio de futebol e como cada ônibus é de um dono eles se dão ao luxo de fazer o que bem entendem do transporte. Pegamos o carro as 11 horas do domingo depois de passar sábado o dia todo atrás de transporte. O microônibus roxo e azul, chamado Dois Irmãos, rodou por duas horas em Dili atrás de passageiros ate realmente cair na estrada. E o calor do era infernal, duas horas de tédio vendo ele se encher de caixas, malas, se abarrotando de pessoas onde inclusive muitas foram de pé. Essa semana eu não andei muito bem, enjoado, meio febril, cansado, sei lá, coisas que muitos de nós já sentimos por aqui.
A primeira parada aconteceu depois de 4 horas num lugar desértico onde vendiam em cabanas de sape na beira da estrada chá, peixe frito no espeto, catupa (bolinhos de arroz com leite de coco embrulhado na palha) e tuamuti (fermentado de palmeira que tem um gosto horrível). Optei por um pão com queijo que havia trazido na mochila. A viagem cheia de curvas, o calor, a água quente do cantil e o sanduíche me deixaram embrulhado e uma leve caminhada entre as cabras que pastavam na outra margem da estrada fez com que me sentisse melhor. Depois de 6 horas de bumba chegamos em Los Palos. Logo em seguida conseguimos fechar com o motorista de uma Anguna (uma espécie de caminhãozinho) para nos levar para Tutuala. Mais duas horas, só que dessa vez mais agradáveis na boleia, com o vento batendo no rosto e assistindo o entardecer. Detalhe: conforme a vontade do motorista fomos ouvindo Leandro e Leonardo, talvez um dos grupos que mais fazem sucesso por aqui.
Ai chegou a parte mais punk. Enfrentamos 8 km de caminhada com mochilas onde carregávamos cada um 6 litros de agua mineral, panelas, comida, esteira de praia, taz (uma espécie de pano colorido local que serve como um ótimo cobertor), câmera de vídeo, fitas, canivete, protetor solar, repelente, mascara de mergulho, snorkel, uma bermuda e duas camisetas. Deixamos Tutuala as 21hs e na companhia de três locais nos metemos na estrada rumo a praia para no dia seguinte chegar a Jaco. No meio do caminho bateu a insegurança: e se estivéssemos na estrada errada? E se fossem ladrões apesar de ser raro por aqui ? E se fizessem parte de grupos de artes marciais? Essa era a minha principal preocupação já que um deles estava com uma camiseta com a bandeira da Coréia do Sul e escrito Taekondo.

Um desses dias fui para Moliana na base das forças de paz da ONU na fronteira com o Timor, junto com um major do exercito brasileiro. La eles disseram que os principais problemas do Timor Leste são: Contrabando de mercadorias, falsificação de dinheiro, os Grupos Politicamente Motivados entre eles a Sagrada Família do L7, ex-guerrilheiro da resistência, muito respeitado no país. Cornélio da Gama, ou apenas L7 (nome de guerra) fundou a seita Sagrada Família que mistura tradições católicas com rituais animistas e possui hoje mais de 20.000 pessoas filiadas com carteirinha e tudo. Ele se sente abandonado pelo governo já que foi comandante da Falintil na época da ocupação, lutou décadas pelo país e teve os dedos das mãos mutilados por uma granada. Ele assim como outros ex-combatentes que não fazem parte deste governo podem ser uma ameaça para a tranqüilidade do país após a retirada da ONU em maio de 2005. Outro problema são os Grupos de Artes Marciais. Eles treinam regularmente, são formados por jovens desempregados (emprego é uma coisa rara por aqui) e muitas vezes são contratados como jagunços para resolver problemas entre famílias.

Depois de dois quartos de hora andando tentamos desbaratinar e dissemos que não queríamos incomoda-los, que realmente eles não precisavam nos seguir e que seria melhor marcarmos de nos encontrar no dia seguinte em Tutuala com um violão, algumas garrafas de tuasabu (destilado de palmeira) para ensinarmos musica brasileira. Eles insistiram em nos acompanhar. Puxei uma musica e cantamos juntos Pense em Mim e Um Sonhador da dupla mais famosa do Timor Leste. Eles cantaram, perguntaram sobre a letra da musica, o que significava e tal, falamos sobre as semelhanças sobre Brasil e Timor Leste, da pobreza que existe em nosso país, da origem da maioria dos jogadores de futebol, da dupla Leandro e Leonardo e que se ilude quem pensa que todo malai é rico, porque os brasileiros vivem tão ou mais problemas que os timorenses. Eles ficaram felizes em saber disso, disseram que nos esperariam no dia seguinte depois da missa (?!) e que se seguíssemos por aquela estrada chegaríamos sem problemas na praia. Passado o susto rumamos para o litoral que só conseguimos atingir as 1hs e 30 da madrugada. Lua cheia, fogueira pra esquentar o supermi (vulgo miojo), esteiras jogadas na areia e logo em seguida minha carcaça estava lá, estirada no extremo leste da ilha do Timor, onde dormi como uma criança.

Timur em bahasa indonésio quer dizer leste. Lorosae de Timor Lorosae, nome oficial do país, quer dizer ao pe da letra terra onde o sol nasce, que traduzindo quer dizer também leste. Então o nome deste país é um pleonasmo. Acordei cedo e vi a ultima estrela do céu rosa grená junto com o sol que nascia no leste do leste do país do leste. E na minha frente um mar azul e transparente e logo a diante a ilhota de Jaco. Mas minha barriga me pregou um susto. Uma diarréia me pegou de jeito, toda a beleza e a poesia do lugar se foi por instantes ate que surgiu um comprimido indonésio chamado Diapet que tomei as escuras, sem saber direito pra que era, só querendo me livrar daquele indesejável mal estar.

Atravessamos de canoa com os pescadores, mais dez minutos e finalmente chegamos no nosso destino final: a tão aguardada Ilha de Jaco. Como disse um amigo, aquele mar é um abuso de tão bonito. Azul, azul, azul....límpido, cristalino, transparente, visibilidade absurda. E a fauna? Nem se fala. Foi só colocar a cara dentro d’água e atravessei um cardume de peixes. Em cada coral peixes dos mais variados tipos, de diversos tamanhos e das mais variadas cores. Era como se nadasse num aquário.

E como diz o poema Itaca que o que vale não é a chegada e sim a viagem e todo o seu processo, posso dizer que foi uma experiência fascinante de descobertas tanto interior quanto exterior. Conheci pessoas notáveis com historias surpreendentes, generosas, hospitaleiras que não caberiam neste email. Pedros, Marias, Joãos, Lourdes, em cada nome familiar uma pequena historia que reflete na historia do país. Pescadores que serviram na resistência, padres que celebram missas literalmente no meio do mato, pessoas que passam a tarde no cemitério por causa do dia de finados, jovens rebeldes que vão à missa, motorista de ônibus que para o carro as 9 da noite no meio do nada para deixar flores e velas num tumulo de um parente na beira da estrada, cachorro de pescador com nome de um chefe da milícia indonésia...

A volta foi um parto. Mandamos as malas com um casal de australianos que apareceram de jipe por la e pedimos para eles deixarem na policia e subimos para Tutuala com os pescadores. Atravessamos durante a noite por vilarejos onde jovens nos olhavam e sempre que passavam diziam com uma entonação de espanto: malai! Eles estavam lá esperando pela primeira missa que iria ser celebrada naquela região. Pegamos as mochilas na policia de Tutuala e dormimos na casa da irmã do policial. Logo de manha um dos brasileiros que estava viajando junto passou mal, teve uma puta cólica e não conseguíamos sair de lá por que era dia de finados e as pessoas que faziam essa linha entre Tutuala e Los Palos não trabalhavam. Conseguimos um carro as 11hs da manha, pagamos apenas a gasolina, almoçamos em Los Palos, tomei meu primeiro banho de água doce desde que sai de Dili e embarcamos no ônibus chamado Cavalo Branco (isso mesmo, escrito na lateral do carro em portugues) para a capital onde chegamos as 23hs.

No próximo email vou escrever sobre as aulas, as musicas brasileiras que tocam em todos os lugares, os táxis que buzinam sem parar quando vêem um malai, as brigas de galos, os mercados que vendem DVDs piratas, o container que eu moro, o campeonato de futebol que começou semana passada, a prostituição em Dili, o problema que o Timor Leste tem com a Austrália em relação ao petróleo e o interesse americano nessa região que deve se intensificar com a vitória do Bush.

1 Comments:

At 10:46 AM, Anonymous Anônimo said...

Muito bom!!! Foi ótimoi reviver Jaco por meio de seu relato.

 

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