quinta-feira, novembro 18, 2004

Centenario de Soibada

Cheguei ontem de Soibada, um vilarejo no interior da ilha, localizado num vale cercado por cinco montanhas, uma regiao sagrada onde a Igreja Catolica resolveu construir um mosteiro ha exatos cem anos atras. Se eles conseguissem conquistar a atencao dos liurais (chefes das familias sagradas), conseguiriam atrair a atencao do resto da populacao. E nao deu outra, o imponente mosteiro instalado num lugar que ainda hoje eh dificil de chegar por conta da pessima condicao das estradas (se eh que podemos chamar aquilo de estrada) formou toda a elite dominante do Timor Leste.
Eu estive em Soibada ha mais de um mes atras, num bate e volta maluco que durou mais de 12 horas, mas dessa vez foi diferente. Viajei com duas amigas brasileiras, a convite de um casal timorense, para a celebracao do centenario do mosteiro. Foi demais! Passamos tres noites, num convento das irmas Dominicanas numa casinha, tipo chale, construido entre uma pocilga e um galinheiro. Vivi uma realidade que ha quase dois meses aqui ainda nao experiementara, conhecendo mais intensamente o modo de vida e de pensar de uma familia daqui. No quarto dormiu a dona Maria e a sua filha de 11 anos e as duas brasileiras. Na sala dormiu eu e o seu Miguel numas esteiras de praia esticadas no chao. De dia fazia um calor de rachar e a noite um puta frio, mas nada que uma pinguinha de palmeira feita naquela região não resolvesse. Cozinhávamos na varanda o suprimento que levamos: latarias, super mi (miojo), arroz, batatas e caixas de agua mineral. O casal pensou em tudo: fogareiro, galoes enormes para pegar agua numa ribeira próxima, baldes, talheres, copos e pratos. O banho era feito de caneca e as necessidades naquelas privadas em que você tem que ficar de cócoras. Não ha nenhuma infraestrutura na cidade para receber visitantes, ou seja, nao ha pousadas, nem restaurantes. Encontramos com alguns alunos nossos que estavam acampados com uma galera num terrenão . E todos que estavam la ou estavam instalados em locais da igreja católica ou na casa de parentes ou ainda acampados.
Na sexta depois de nadar na ribeira e voltar na caçamba do carro do seu Miguel segurando os galões d’água, fui gravar algumas imagens na vila. Estava imundo, de bermuda úmida e boné. Do alto do convento vejo uma pessoa cercada por seguranças cumprimentando todo mundo. Desço para sacar melhor o que estava acontecendo e percebo que aquela pessoa era nada mais nada menos o ex-guerrilheiro, poeta, pintor, fotografo e hoje presidente da Republica do Timor Leste, Jose Alexandre, codinome Kay Rala Xanana Gusmão.
Começo a gravar, ele estava cercado por autoridades locais, alguns padres, o bispo D. Basílio de Baucau e D. Ricardo de Díli. O presidente cumprimenta varias pessoas que estavam ao redor e me da a mão. Digo meio sem graça:
- Boa tarde, presidente. Muito prazer em conhece-lo.
- Só estava esperando você falar alguma coisa para saber de onde era. Já vi que é brasileiro. O que fazes por aqui?
E ai contei rapidamente sobre o projeto que participava, ate que outras pessoas se aproximaram para falar com ele. Depois o bispo de Baucau me cumprimentou também, pois já nos conhecíamos de uma gravação que rolou na semana anterior e me convidou para segui-los ate a casa episcopal para tomar um café. E lá fui eu, de bermuda, boné e ainda meio molhado do rio tomar café com a comitiva e o presidente.
Umas 15 pessoas em torno da mesa, bolinho, rocambole, bolachas, café, leite e chá. Xanana Gusmão me pergunta de que região do Brasil eu era e começamos a conversar. Fiquei impressionado com sua simplicidade e seu carisma. Afinal, ele foi uma pessoa que aprendi a admirar desde que cheguei aqui. Durante as entrevistas que realizei para o documentário, todos foram unânimes quando falaram do presidente, da sua força, determinação e luta em prol da independência do Timor Leste. E imagina: um cara guerrilheiro, poeta, pintor e fotografo...aparentemente um paradoxo, mas um livro dele de pinturas e poesias chamado “Mar Meu” mostra que o cara tem o dom também para as artes.
No dia seguinte as 23hs subi ate o Santuário localizado há 2 km da cidade para assistir a missa dedicada a Força de Defesa do Timor Leste. Os milicos com armas 9 mm na cintura, alguns que carregavam sub metralhadoras nas costas acompanhavam a missa de dentro da capela localizada no alto da montanha. A cena que mais me marcou foi quando eles comungaram: ver aqueles caras fardados e armados ate os dentes recebendo uma hóstia do padre não é uma coisa muito usual e que a gente vê todos os dias.
A Igreja Católica sempre exerceu um papel muito importante para a Independência do Timor. Alguns padres se relacionava muito bem com as forças de resistência, inclusive alguns deles serviam de ponte com o exterior levando papeis, cartas e documentos para serem publicados e alertando assim a comunidade internacional sobre os massacres que ocorriam no país. Alguns padres levaram escondidos ate transmissores de rádios para o pessoal da resistência. O bispo D. Basílio (aquele que me convidou para tomar café com o presidente), quando ficou sabendo que as milícias da Indonésia estavam queimando todo o Timor Leste, em 1999 durante o período da desocupação, mandou comprar com o dinheiro da Igreja toda a gasolina de Baucau. Assim quando eles chegaram lá não tinham combustível para queimar a cidade. Baucau é a única cidade intacta do Timor Leste que não foi queimada pelas milícias. Não há ruínas e todas as casas construídas no período colonial português estão preservadas.
No domingo acordei com uma puta ressaca depois de tomar duas cervejas vencidas (impressionante mas ate já desencanei dos prazos de validade) e matar a garrafa de daunloro (o tal destilado de palmeira da região) com o seu Miguel e fui me juntar com a procissão que havia acabado de sair. Estava andando com as duas brasileiras e encontramos com o Ministro do Interior, Rogério Lobato, que havia conhecido em Díli na Conferencia sobre o Mosteiro de Soibada que antecedeu em um final de semana a festa do centenário. Ele nos cumprimentou e disse que estava feliz em encontrar brasileiros naquela região, num momento tão especial para o país. Nisso um guarda da comitiva veio cochichar alguma coisa na minha orelha:
- A piscaleira. – murmurou o guarda
- O que? Respondi sem entender nada
- A piscaleira.
- O que?
Nisso todos que estavam conversando ficaram em silencio. Viramos o centro das atenções. E o guardinha insistiu:
- A sua piscaleira esta aberta.
Porra, era o meu zíper. Estava aberto e eu lá sem entender nada. Todo aquele estardalhaço todo por conta de uma braguilha aberta. Para quebrar aquele silencio sepulcral o ministro falou:
- Acho que a procissão já começou. Vale a pena apressar o passo.
E fomos atrás da multidão que caminhava para o Santuário no alto da colina.
Esse ministro da piscaleira esteve preso em Angola, no inicio da década de 80. Condenação: trafico de diamantes. Dizem que ele, que foi chefe da resistência, recebeu uma grana para ir para o exterior e descolar dinheiro para enviar um navio carregado de armas para os que lutavam pela independência do Timor Leste. O tal navio chegou a deixar o porto de Luanda, mas nunca aportou em terras timorenses. E depois disso ele foi preso tentando sair com alguns diamantes em direção a Portugal.
Depois da missa final que durou três horas e misturou elementos da cultura local, como danças tradicionais o que me rendeu ótimas imagens, comi ainda na casa episcopal, pra finalizar a viagem e fecha-la com chave de ouro, o bolo do centenário do Mosteiro de Soibada.