quarta-feira, fevereiro 04, 2004

Traçando Japão

"O Japão vive em dois espaços simultâneos. De um lado, o pouco espaço do cotidiano e a pressa da rua e do negócio. Do outro, os grandes espaços dedicados ao passado e ao sagrado e o vagar da atividade ritualizada. E para passar de um para o outro, basta tirar os sapatos."

Analise sobre às variações da noção de tempo e espaço no Japão, por Luís Fernando Veríssimo

ITACA

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrará
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.
Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda a espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.
Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

Konstantinos Kaváfis



Próximo do Paraíso

Se você quiser pernoitar em Paulinho Neves, ou apenas almoçar o único lugar eh a Pousada de Dona Maze. La os viajantes se encontram e deitados em redes sob frondosas mangueiras podem descansar das longas caminhadas pelas dunas dos Pequenos Lençóis. A pousada se localiza nas margens do Rio Novo, onde o entardecer mais parece uma pintura impressionista. Talvez tanta beleza atraiu um forasteiro que conheci durante um almoço na Pousada Oásis dos Lençóis.

Seu Fran, que aparentava uns 60 anos, era uma pessoa cheia de historias, falante e sorridente, mas no fundo de seus olhos parecia esconder alguma coisa. Ele me contou que vinha de João Pessoa, que fora um engenheiro de renome na capital da Paraíba, onde realizou diversas obras para o governo local. Estava separado da mulher e depois de muita insistência percebera que os filhos não se interessavam pelo negocio. Eles só queriam saber de festas e noitadas e por isso resolvera vender o empreendimento e viajar para conhecer o Brasil que ate então pouco conhecia. Rodou por diversas praias, cerrados, serras e cachoeiras. Esteve na Amazônia, no pantanal e no sertão do centro-oeste. Mas foi naquele lugar, no meio do trajeto entre Barreirinhas e Tutoia foi que resolveu se instalar. Seu Fran já vive em Paulinho Neves há quase 3 meses. No vilarejo financiou a reforma da única escola e da Igreja. As terças e quintas exerce a atividade de professor voluntário do colégio, onde ensina matemática. Muitos moradores achavam que ele queria se candidatar a prefeitura do local, por isso arrumou algumas inimizades. E quando perguntei quando pretendia ir embora ele foi convicto na resposta: “Sabe eu já passei por muitas coisas na minha vida. Agora eu quero sossego e aqui perece que eu o encontrei. Só saio daqui quando a vida me levar”

A noite, num bate papo com a Dona Maze ela me revelou que seu Fran estava com câncer e fora desacreditado pelos médicos. Alguns diziam que ele viveria por apenas três meses, outros falavam em seis meses. Mas já se passou quase e o velho continua cheio de sonhos e de vida. Agora entendo a sua escolha por este local.

Miragens no Deserto

Entre os diversos lugares pelos quais já passei, existe um vilarejo especial que em momentos de tristeza procuro fechar os olhos e sentir o cheiro, as cores e a energia do povoado. A viagem, rumo a Paulinho Neves, já eh uma aventura repleto de belezas naturais. Saindo de Barreirinhas, porta de entrada dos Lençóis Maranhenses algumas Toyotas tracionadas fazem o trajeto para o paraíso. Nela os passageiros viajam na caçamba junto com caixas cheias de peixes, galinhas, e ate um bode com as quatro patas marradas se exprimia entre as pessoas na parte de trás do carro. Na frente uma moradora gravida ia na cabine para se proteger do sol escaldante do meio dia. Derrapando entre dunas, atravessando lagoas, passando rente aos arbustos, os passageiros tinham que se segurar e ao mesmo tempo se proteger dos galhos que chicoteavam os desatentos. E no caminho diversas paradas para pegar mais pessoas, que apesar da lotação máxima do carro sempre cabia mais um, pois outro transporte só no dia seguinte. Numa dessas paradas um rapaz embarcou com um colchão e no arranque súbito do motorista lá se foi o rapaz e o colchão para o chão. Por pouco ele não ficou para trás.

Depois de um par de horas de viagem, o motorista parou em uma casa de taipa e se esqueceu completamente dos passageiros que pagavam para chegar em Paulinho Neves. Ele desapareceu com o dono do lugar e seus filhos para procurar o rebanho de cabras que pastavam pelas dunas. A Toyota ficou uma hora parada e a gravida lá, já habituada com tipo de viagem. O sol quente, todos se acotovelando e a longa espera começou a me deixar irritado com o descaso do motorista. Foi quando me lembrei do poema Itaca de Konstantinos Kaváfis, que diz que mais vale a viagem do que propriamente a chegada. Fui atras das cabras, cruzei duas dunas para ver o que estava acontecendo e diante dos meus olhos saltou uma paisagem bíblica. Entre as fumaças que pareciam se evaporar da areia, dezenas de cabras arrebanhadas por duas crianças caminhavam pela crista de uma duna mais adiante. O vento forte soprava contra os cabelos dos pequenos. Aquela imagem parecia uma visão, ou melhor uma miragem causada pelo forte calor e pelas horas sentado num carro que não parava de sacolejar. O motorista e o morador daquele minúsculo povoado tranqüilamente se refrescavam dentro de uma pequena lagoa de água doce enquanto conversavam sobre a melhor maneira de preparar o bode.

E depois de quase 6 horas de viagem, com mais um novo passageiro apertado que serviria de jantar no dia seguinte, enfim chegamos em Paulinho Neves, ou como outros preferem chamar pelo antigo nome da vila, Rio Novo.